- 27 de outubro de 2021
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Difícil imaginar personagens mais antagônicos que integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e investidores do mercado financeiro. De um lado, os militantes da reforma agrária, embalados por ideais de sociedade igualitária, e, do outro, caçadores de boas oportunidades de lucro, normalmente associados ao capitalismo selvagem. Esse contraste foi anulado por uma iniciativa que uniu os dois polos em uma operação inovadora. Em maio do ano passado, o ex-banqueiro Eduardo Moreira, com experiência de 20 anos no mercado financeiro, criou um fundo, batizado de Financiamento Popular (Finapop), que captou R$ 1,5 milhão em investimento para concluir a indústria de uma cooperativa gaúcha do MST. O sucesso fez com que a experiência fosse repetida neste ano. Em nova operação feita em setembro, o Finapop captou no mercado R$ 17,5 milhões para apoiar ações de agricultura familiar dos sem terra.
Misturar investidores e agentes sociais deu tão certo que novas empreitadas semelhantes estão sendo constituídas. Nas próximas semanas, será lançado um empreendimento de habitação a preços acessíveis em São Paulo; até o fim do ano uma nova franquia de curso de inglês será implantada em comunidades pobres, privilegiando empreendedores locais; além disso, estão em gestação uma operação de financiamento para apoiar comunidades indígenas e, logo após, outra em favor de grupos quilombolas. Na mesma linha, apesar de não ter ligação com esses projetos, foi criado em dezembro o LeftBank, um banco brasileiro que destina parte do lucro a ações sociais e mira clientes que se identifiquem ideologicamente como de esquerda ou centro-esquerda. Os responsáveis por essas iniciativas estão convencidos de que há investidores dispostos a injetar dinheiro em operações que contribuam para a diminuição da desigualdade e que apoiem projetos de teor social.
Essa convicção levou Eduardo Moreira, conhecido por seus livros e cursos de educação financeira, a fazer a última operação com o MST em moldes que sirvam para criar uma espécie de manual, o caminho das pedras para quem quiser imitar. “Isso pode ser replicado para cooperativas de pescadores, catadores e artesãos, por exemplo”, garante.
Novos projetos a caminho
Para concretizar a ideia de atrair investidores para apoiar o MST, Moreira contou com a parceria de João Paulo Pacífico, o CEO do Grupo Gaia, empresa que serviu como securitizadora para a operação. Na empreitada, Pacífico enfrentou vários obstáculos inéditos, como a resistência de advogados em dar assessoria à operação e a ameaça de que poderia ficar sem clientes se levasse à frente a parceria com os sem terra. Apesar disso, a operação feita em setembro foi sucesso absoluto: 5 mil pessoas abriram contas, interessadas em participar, e 1,5 mil investiram. “Quando o negócio deu certo, mesmo pessoas de direita aplaudiram, porque seguimos as regras de mercado.
Foi uma boa quebra de paradigma”, avalia Pacífico. Agora, ele se movimenta para apoiar outras iniciativas sociais. Nas próximas semanas estará começando a construção de um prédio para habitação acessível, com aluguel até R$ 1 mil, no Centro, em São Paulo. “O prédio vai ter gestão social, para ajudar os locatários”, diz. Um segundo prédio está nos planos. Ambos serão erguidos com recursos captados com investidores do ramo imobiliário.
No padrão do que foi feito com o MST, até o fim do ano Pacífico pretende lançar uma franquia de escolas de inglês nas comunidades pobres, idealizada para que pessoas de baixa renda sejam os franqueados. “Assim vai haver geração de renda para os empreendedores e teremos o curso de inglês mais barato do Brasil nas comunidades”, explica o CEO da Gaia.
Ainda sobra fôlego para um projeto em parceria com comunidades indígenas que deverá sair do papel ainda no primeiro trimestre de 2022. “Estamos planejando com cuidado, porque cada povo tem suas características, alguns não sabem lidar com dinheiro”, conta. A ideia é financiar produção de alimentos e fabricação de artesanato. Em seguida, a experiência vai ser replicada com quilombolas. Pacífico nega que o objetivo seja atrair apenas investidores de um determinado perfil ideológico. “Os produtos que a gente tem na Gaia servem a um cara de esquerda, mas também de direita, desde que tenha um olhar social. Não quero excluí-lo do meu rol de investidores”, afirma.
“Não é verdade que ao investir no MST estão fomentando o comunismo”. Ele se define atualmente como alguém de centro-esquerda, mas admite que já foi de direita. “O mercado financeiro é de direita. À medida que fui ganhando consciência social fui migrando para um perfil mais à esquerda”, define.
O banco da esquerda
Uma outra iniciativa que usa a lógica das finanças para dar suporte a projetos sociais é o LeftBank, banco brasileiro criado em dezembro do ano passado, que tem como diretor de relações institucionais o ex-deputado petista Marco Maia. Foi criado na esteira da mudança legislativa que permitiu que empresas de tecnologia possam operar na área financeira, as chamadas fintechs. O LeftBank tem o propósito de apoiar ações populares de vários tipos, da agricultura à energia. Isso será feito com repasse de 20% do lucro do banco a iniciativas ligadas a movimentos sociais, indígenas, quilombolas e ONGs. O objetivo é focar em clientes que se identifiquem como sendo de esquerda ou centro-esquerda. Em uma pesquisa feita pelo banco para medir o tamanho desse mercado, 30% dos entrevistados se definiram dessa forma – um nicho que representa 65 milhões de pessoas. Maia destaca que, com a chegada de Jair Bolsonaro à presidência, ganharam destaque empresários negacionistas, com práticas predatórias, sem qualquer preocupação com o país, que acabaram entrando para uma lista negativa divulgada por consumidores identificados com a esquerda.
“Precisamos ter uma lista positiva de empresas e produtos que defendem o meio ambiente, a ciência, os direitos humanos, que sejam contra a reforma trabalhista”, diz ele. “É nisso que acredita o grupo que criou o banco”.
O LeftBank tem hoje 3 mil clientes e atinge, através de seus produtos, cerca de 12 mil pessoas. O objetivo é chegar a 3 milhões de clientes em dois anos.
“Cada vez mais as empresas vão querer se aproximar de comportamentos mais socialmente adequados e também atender a determinados nichos”, acredita Marco Maia. “Empresários de pensamento retrógrado, somente explorador, vão cada vez mais perder espaço”. Ele brinca dizendo que o banco não faz análise ideológica dos clientes, mas é transparente quanto a suas práticas. “Quem entrar sabe os nossos propósitos”, garante.
Democratização do mercado financeiro
Esse é o ponto de convergência das iniciativas de “finanças sociais”: dar aos clientes as informações sobre quais tipos de atividades estão sendo financiadas com o seu dinheiro. Para Eduardo Moreira, essa mudança é fundamental. Ele define o mercado financeiro como um sistema de estradas por onde fluem as riquezas. “O mercado não é nem bom e nem ruim, não é nem capitalista, porque sistema financeiro tem na Coreia do Norte, em Cuba, na China. O sistema financeiro é uma plataforma”, diz. “Como isso é utilizado, aí sim, pode ser muito concentrador de renda ou muito otimizador de uma economia”. Lamenta que no Brasil seja usado de maneira danosa ao ideal de uma sociedade mais justa. Depois de duas décadas no mercado financeiro, trabalhando na cúpula de instituições como o Banco Pactual, Moreira enveredou por esse caminho depois de se propor a estudar as causas e efeitos da desigualdade na distribuição de renda no Brasil. Foi ele quem procurou os sem terra para conhecer melhor o movimento – e ficou encantado.
“Vi a capacidade que eles têm de regenerar a terra, de trazer riqueza para uma população carente de tudo, revitalizar cidades. Pensei: como isso pode sofrer tanto preconceito?”, recorda. Com o início do governo Bolsonaro, o MST teve cortada uma linha de crédito importante e os líderes do movimento procuraram Moreira para indicar onde conseguir empréstimo barato. Ele propôs uma solução nova. Aí nasceu o Finapop. Mesmo antigos colegas de mercado, que eram resistentes à ideia, reconheceram o êxito da operação. “Curiosamente, algumas críticas vieram de uma turminha do mercado, que defende o liberalismo. Mas o liberalismo não diz que o mercado vai permitir que todos acessem?”, questiona. “Aí o MST segue essas regras e também criticam. Então, isso mostra que querem o mercado só para eles”.
Reportagem: Chico Alves para UOL Notícias 24/10/2021